SÃO DOMINGOS, HOMEM DO SEU TEMPO... E TAMBÉM DO NOSSO
Frei Betto
São Domingos, nascido em Caleruega, na Espanha, provavelmente em 1170, é um desses santos que, podemos dizer, permanecem atuais em pleno século XXI. Sua vida foi ao mesmo tempo simples e extraordinária, pobre de bens e rica de graças, humilde e enaltecida pela grande obra erguida por seu espírito evangélico.
Domingos não se perde na noite dos séculos como alguém que cumpriu a sua tarefa e já não tem nada a dizer para homens e mulheres de hoje. Pelo contrário, o radicalismo com que viveu o Evangelho, a pobreza apostólica com que revigorou a Igreja, a pregação que adquiriu com ele um novo caráter, a comunidade cristã que reuniu na Ordem dos Pregadores - conhecida como Ordem Dominicana -, fizeram dele um homem do futuro, pois seu estilo de vida cristã é, para nós, convite e meta a ser alcançados para quem se dispõe a entregar-se totalmente à vontade de Deus e ao serviço do próximo.
Antes de ser um santo, Domingos foi um homem, um cristão que recebeu no batismo o apelo do Senhor e, durante a vida, procurou respondê-lo, entre fracassos e vitórias, tentações e conquistas, tribulações e alegrias.
Filho de uma família rica, desde cedo foi educado na fé e na caridade, pois sua mãe, Joana, não hesitava desviar o que de melhor havia em casa para dar aos pobres. Esse testemunho materno ficará para sempre gravado em Domingos, que mais tarde não só ofertará a sua vida aos pobres, como também tornar-se-á ele mesmo pobre, tendo que mendigar de porta em porta como faziam os miseráveis de Caleruega.
A época em que Domingos viveu - fins do século XII e princípios do século XIII - era muito diferente da nossa em alguns aspectos, mas semelhante em outros. Era o tempo em que o cristianismo e a Igreja dominavam a comunidade europeia; ninguém ousava duvidar da existência de Deus. Príncipes e reis nada faziam sem a chancela dos bispos e do papa, e a Igreja gozava, não apenas de grande prestígio, como também de poder e riqueza, facilmente identificáveis pela suntuosidade de sua catedrais e a extensão de suas terras.
O antigo sistema feudal, caracterizado pela economia de subsistência, dava lugar ao aparecimento do comércio e, consequentemente, das cidades, onde então se efetivava a troca das mercadorias e surgia a circulação da moeda. Após longo período de estagnação econômica apontava-se um novo surto de desenvolvimento. Entretanto, a nova sociedade mercantil, os centros de riqueza e culturas delineados pelas cidades, o comércio marítimo, que fazia da costa da Itália uma ponte entre Oriente e Ocidente, não beneficiavam a todos, mas apenas a minoria da população proprietária de terras, detentora do dinheiro, monopolizadora do comércio marítimo e das rotas de distribuição das mercadorias pela Europa.
Grandes massas humanas, antigos camponeses despojados de suas terras, privados de seus meios de produção, viram-se relegados ao desemprego e à miséria, obrigados a mendigar ou a integrar bandos de assaltantes que agiam nas estradas. Como fruto dessa opressão, a Europa cristã viu renascer em seu seio a exploração como meio de vida.
Vemos que os problemas sociais que caracterizavam a época de Domingos não diferiam muito desses que existem ainda hoje à nossa volta. As clamorosas injustiças exigiam uma resposta de justiça, assim como a opulência da Igreja requeria o renascimento da pobreza evangélica. Domingos será um dos homens chamados por Deus a dar essa resposta, mas não estará sozinho nessa tarefa que significava, sobretudo, a profunda renovação da Igreja, fundamento da sociedade medieval. Ao seu lado, na mesma época, encontramos Francisco de Assis e Antônio de Pádua, dois santos que deixaram eternamente gravados na história a força de uma caridade que via no pobre a própria figura do Cristo, com o qual se identificavam, assumindo um despojamento radical e libertador.
Uma vocação de serviço
O nome de Domingos significa: “homem do Senhor, seu servidor”. Bem cedo ele parece ter percebido essa vocação ao serviço de Deus. Vocação, aliás, que é dada a todos nós pelo batismo e pela fé, mas que exige de nossa parte resposta afirmativa, a fim de que a graça divina frutifique em nossa vida e nos leve a realizar o desígnio do Pai.
Com a idade de 6 ou 7 anos, Domingos foi entregue às mãos de seu tio padre, a fim de que este cuidasse da sua educação. Isso era comum na época, sobretudo quando a criança, mergulhada no clima religioso que a cercava, demonstrava interesse em seguir a vida religiosa ou abraçar o sacerdócio. Como não havia escolas leigas, e só através da Igreja era possível obter-se uma sólida formação cultural, o caminho do filho de Joana e Félix não poderia ser outro.
A vocação é um carisma, um dom que o Senhor nos concede para que possamos bem cumprir nossa missão como cristãos. Todos nós temos aptidões naturais, seja intelectuais ou manuais, artísticas ou artesanais, favorecidas e desenvolvidas pelo meio em que vivemos e pelo trabalho que desenvolvemos. Muitas dessas aptidões, porém, nem sempre afloram porque nos faltam recursos para aperfeiçoá-las e a sociedade não propicia condições para que cada um possa dedicar-se ao trabalho que lhe agrada. Pelo contrário, em geral somos obrigados a aceitar qualquer emprego, porque é o salário que interessa. Estamos ainda na fase em que o homem trabalha para sobreviver e procura ganhar um salário para satisfazer suas necessidades mais elementares, como comer, habitar, vestir-se e locomover-se. O trabalho deixará de ser um fardo quando pudermos viver para trabalhar naquilo que nos agrada, e de acordo com as necessidades e exigências do bem comum, participando dos frutos do trabalho social.
Pela sua graça, Deus nos concede também aptidões sobrenaturais, de tal modo que possamos, pelo nosso testemunho de vida, suscitar no próximo a fé cristã. Essa vocação é, na expressão de são Paulo, carismática, e dela participam todos os cristãos, sem exceção. Todos nós recebemos um carisma do Espírito Santo.
Escrevendo à Igreja de Corinto, Paulo afirmava: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum... Porque como o corpo é um, tendo muitos membros, todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo” ((I Coríntios 12, 7.12). Assim é a Igreja, Corpo de Cristo, do qual somos os membros. Cada um de nós recebe do Espírito uma vocação que só dará fruto se acatarmos este dom. Mas nunca para proveito próprio, sempre em benefício da comunidade, do Povo de Deus.
Por isso só sabemos se a nossa vocação é de fato suscitada pelo Espírito se ela representa serviço à comunidade e anuncia, pelo testemunho que damos, que Jesus Cristo é Senhor. A vocação de Domingos, seu carisma em proveito da Igreja, foi a pobreza apostólica.
Já adolescente Domingos transfere-se para Palencia, onde dedica-se ao estudo da gramática, ciências naturais e humanas, e filosofia. Como qualquer estudante que ainda hoje deixa o seu lar para estudar num centro universitário, Domingos aluga um quarto numa pensão, onde, à luz de vela, passa as noites debruçado sobre os livros. Consagra quatro anos ao estudo da teologia, principalmente da Bíblia. “Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lucas 11, 28). Para o jovem estudante havia duas maneiras de guardar a Palavra de Deus: retendo-a pela leitura, pesquisa e meditação, e praticando-a.
Não eram muitos os que, na época, tinham acesso ao estudo. Isso constituía um verdadeiro privilégio. Mesmo entre o clero havia muitos praticamente analfabetos. Dentro da Igreja eram os monges que se dedicavam à atividade intelectual, traduzindo e copiando textos importantes.
A Igreja do século XIII, envaidecida pelo seu poder e prestígio, corria o risco de perder-se das fontes da revelação divina se não se voltasse para o estudo da Bíblia. Domingos haveria sempre de insistir que a Bíblia deve ser conhecida, lida e relida; pois como praticar o que não se conhece? Como pregar se não temos contato com a fonte da Revelação de Deus, o Antigo e Novo Testamentos, que muitas vezes enfeitam nossas prateleiras, quando deveriam é ocupar o nosso coração.
Escrevendo aos cristãos de Roma, Paulo perguntava: “Como vocês podem invocar alguém em que não tem fé? Ou como podem crer naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão falar se não houver quem pregue?” (Romanos 10, 14).
Só podemos saber quem é a pessoa na medida em que se dá a conhecer. Deus se dá a conhecer na história do povo judeu, registrada na Bíblia pelos autores inspirados. É este o caminho que Domingos ensina àqueles que querem saber quem é e qual é a vontade de Deus, o plano da salvação que Ele traçou para nós, através da leitura e meditação da Bíblia.
Não é apenas nos nossos sentimentos religiosos ou no nosso recolhimento espiritual que Deus se manifesta. É na história desse povo que Ele suscitou a partir de Abraão. A história do Povo de Deus é cheia de tribulações, períodos de opressão, guerras, traições, pecados e conquistas. Mas Deus, através de Moisés, estabeleceu uma aliança, assegurando que o seu povo seria sempre objeto de seu amor e de sua misericórdia. Toda a história dessa aliança e da relação de Deus com o povo está registrada no Antigo Testamento.
Esta história culmina com Jesus Cristo, presença de Deus na história dos homens, pelo qual Deus estabeleceu conosco uma nova aliança selada pelo sangue derramado na cruz, e fez de nós, que temos fé na ressurreição de Cristo, o seu povo.
Uma luz no nosso presente
Ao abrir a Bíblia, certamente sentimos a mesma dificuldade que o jovem Domingos deve ter enfrentado em Palencia: termos, episódios, nomes e lugares citados, tudo nos parece tão estranho que acabamos fechando o Livro, como se estivesse ao alcance apenas de uma minoria que estudou para compreendê-lo. Nada mais falso; a Bíblia é antes de tudo um livro popular. A dificuldade não está nela, mas em nós. Nós é que não sabemos lê-la, pois a encaramos como um livro do passado.
Domingos a encarava como um livro escrito no passado para iluminar o presente em vista do futuro. A Palavra de Deus lança uma luz nova sobre os acontecimentos do nosso presente, De tal modo que, através dela, possamos desvendar qual o projeto divino para o futuro.
Frei Betto é frade dominicano e escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre fé e ciência” (Agir), entre outros livros.
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