A
vida comunitária na Ordem dos Pregadores: uma meditação de At 2, 42-26
Promoção
vocacional dominicana
O
antigo Mestre da Ordem dos Pregadores, frei Timothy Radcliffe, um espirituoso
frade inglês, gostava de contar sobre seus diálogos com os jovens confrades,
nas inúmeras visitas que devia fazer aos dominicanos espalhados pelo mundo.
Perguntou algumas vezes: “qual a melhor e mais rica realidade da vida
religiosa?” “A vida comunitária”, respondiam; “e a mais desafiadora?” “A vida
comunitária”! Justamente, as melhores coisas costumam custar sacrifícios, como
já lembrava Santo Tomás de Aquino, quando falava sobre a paciência, em sua Suma
de Teologia. Quem sabe a paciência, uma das caraterísticas do amor-caridade
(cf. 1 Cor 13, 4), seja o dom mais importante na construção, nunca terminada,
da verdadeira vida comum (cf. Col 3, 12)...
No número 17 do Livro das
Constituições e Ordenações dos frades pregadores (a “constituição” da Ordem
dominicana), lemos que “no início da Ordem, S. Domingos pedia aos seus irmãos
lhe prometessem comunidade e obediência”. A comunidade está na origem do viver
dominicano, de modo que não podemos conceber um dominicano sem comunidade.
Mesmo quando algum de nossos irmãos precisam, em vista de uma missão, estar
algum tempo fora de sua comunidade, podemos dizer que na pregação daquele irmão
se faz presente sua comunidade dominicana. Também é preciso ressaltar que a
vida de fraternidade em um Convento não resume todas as maneiras de vida
comunitária em nossa Ordem, como nos mostram as interessantes experiências em
comunidades inter-congregacionais, mistas ou não, ou mesmo comunidades com
religiosos e leigos.
A inspiração básica para conceber-se
a vida dominicana como vida comum está no livro dos Atos dos Apóstolos:
Eles
mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à
fração do pão e às orações.
Apossava-se
de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e sinais que se realizavam
por meio dos apóstolos.
Todos
os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas
propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de
cada um.
Dia
após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas
casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a
Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia
ao seu número os que seriam salvos” (At 2, 42-46)
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Grande é a riqueza que este texto, em
sua singeleza, nos apresenta. Histórica e espiritualmente é um testemunho de
grande valor para nossa Família dominicana. Por isso, podemos enxergar em seus
trechos itens importantes para a vivência da vida comunitária dominicana.
O primeiro item da assiduidade da
nascente comunidade cristã é em relação ao “ensinamento dos apóstolos”. O que
isso nos significa? O ensinamento dos apóstolos é a própria fé da Igreja:
cremos no que recebemos dos apóstolos. A comunidade religiosa se forma sobre
este fundamento: a fé. Não nos reunimos em comunidade por simples amizade, como
jovens numa república, ou por causa de um projeto humano, mas por causa da fé,
na nos encontramos unidos, pela graça do Espírito Santo. Por isso, não há
sentido numa comunidade dominicana se não é a fé que a sustenta. E é justamente
esta fé que possibilitará à fraternidade e a cada um de seus membros ultrapassarem
qualquer barreira, qualquer crise, qualquer esmorecimento.
Aqueles que na comunidade religiosa têm
o papel de estar à frente, orientar e cuidar da unidade têm a dura tarefa de
sempre chamar a atenção de seus irmãos para este caráter essencial, sobretudo
quando as comunidades parecem se esquecer a motivação básica de seu ser. Tal
tarefa pode se apresentar bastante espinhosa em tempos de individualismo e de
fuga total a qualquer conflito (características tão próprias da
pós-modernidade), mas a certeza da fé, sobretudo quando pouco se fala dela no
mundo, é a única a poder sustentar uma comunidade religiosa em seu caminho.
Verdade e amor não se separam em uma comunidade de fé (cf. 2Jo3).
O texto de atos também nos fala de
unanimidade em relação “à comunhão fraterna” e “à partilha do pão”. Não podemos
falar de comunidade sem comunhão. E o que vem a significar isso? Uma comunidade
onde há irmãos pobres e irmãos ricos, onde se observa claramente que há
privilegiados, gente que não conseguem partilhar, não pode ser uma comunidade
efetivamente. A comunidade não é um ente teórico. Por isso, o primeiro passo
para se engendrar vida fraterna é a partilha dos bens, é a partilha concreta,
sinal de uma nova sociedade, onde todos tenham dignidade. Nesta compreensão se
insere a pobreza evangélica.
E o texto nos informa ainda outras
coisas: os que tinha alguns bens vendiam-nos para que fosse assegurada a dignidade
de cada membro da comunidade, segundo suas necessidades... e onde não há
acúmulo, há simplicidade de vida, marca dos homens e das mulheres livres.
É na partilha concreta que uma
comunidade mostra sua realidade escatológica: quer ser sinal da vida em
plenitude prometida por Jesus, mesmo sabendo que neste sentido sempre estará a
caminho. Ela busca viver, neste mundo, os valores do Reino, que já está entre
nós (Lc 17,21).
No entanto, esta partilha vai além
daquela dos bens: na comunidade, busca partilhar-se o respeito, a bondade, a
gentileza. Busca-se ver com constância no próximo um irmão, para ser
respeitado, para ser alguém com quem nos importemos, não mais um estranho ou um
objeto. E aí encontramos um outro desafio: como respeitar a diversidade,
realidade inerente à vida em comum? Quando o diferença do irmão é vista como
riqueza e não como ameaça é então que estou aprendendo o que é viver em comum.
Seguramente é um engano pensarmos que as comunidades para serem felizes devem
ser homogêneas, feitas à nossa imagem e semelhança! Escreveu em sua carta de
promulgação das Atas do Capítulo Geral de Roma, em 2010, o Mestre da Ordem frei
Bruno Cadoré: “Esta diversidade dos frades é a força de nossa Ordem, e sua
alegria. Na Ordem, os mundos tanto de referências como os culturais,
compreendendo também os eclesiais e os teológicos, são diversos”.
Na comunidade busca-se a unidade no
essencial, proporciona-se a liberdade em relação ao não-essencial, buscando-se
viver em tudo a caridade. Sem estes valores, não podemos falar de democracia,
palavra tão cara à espiritualidade da Ordem dominicana.
A comunidade apostólica também era
unânime na “oração”, em seu diálogo em conjunto com Deus. A primeira pregação
que faz uma comunidade dominicana, seguramente, é o seu testemunho de oração em
comum. É quando as vozes são unidas umas as outras, e todas unidas à voz da
Igreja, louvando, pedindo e agradecendo ao Senhor de todos os dons é que temos um
sinal de cristãos que buscam fazer de suas vidas um diálogo constante com Deus,
como Domingos, que falava “de Deus e com Deus”, nas palavras do Beato Jordão de
Saxônia, segundo superior geral da Ordem dos Pregadores.
A oração em comum vive da oração de cada
membro da comunidade. Ir para oração comum sem oração pessoal, nas palavras de
São João Crisóstomo, é colocar incenso sobre carvão apagado. Mas a oração
pessoal se desenvolve, se completa, se torna espelho da fé, que age no amor,
quando se abre à oração em comum. Orar juntos também significa dividir os cuidados
de uma “casa de pregação”: oramos pelos homens e louvamos a Deus, e isso faz
parte de nosso ofício de pregadores.
É este modo de viver evangelicamente que
possibilitava os primeiros cristãos, e que possibilita a uma comunidade
religiosa, causar “temor” aos que a vislumbravam; só uma comunidade que se
arrisca a viver evangelicamente pode ver nascer nela “prodígios e sinais”,
porque não se preocupa tanto com o que pode fazer, mas permite que Deus aja por
ela! Vive na dinâmica do dom do Espírito Santo, que pode ali produzir
abundantemente seus frutos (cf. Gl 5, 16-25).
Noutras palavras, as comunidades
evangélicas, podem causar espanto, logicamente, mas também suscitar possíveis
seguidores.
O texto de Atos não nos diz que a
comunidade era a última responsável pelos novos cristãos: “E o Senhor
acrescentava...”. É o próprio Deus que pode chamar os jovens a se engajar numa
vida em comum em vista da pregação. Quem sabe seja sempre bom nos lembrarmos,
nestes tempos nos quais o marketing
define tantas coisas, que a comunidade é pregadora, mas quem aumenta a faz
crescer é o próprio Deus (“eu plantei, Apolo regou, mas é Deus quem fez
crescer”, disse Paulo em 1Cor 3,6). O pregador pode ou não ajudar a suscitar a
fé, não somente por suas palavras, mas sobretudo por sua coerência. Como
recordava o Papa Paulo VI, em sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, “O homem
contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres”. E um mestre só pode ensinar se
for testemunha. É o que intuiu Domingos no nascimento de sua Ordem: pregar vai
além de fazer discurso: envolve a própria vida; quis não comunidades de
pregadores, mas comunidades pregadoras: lugares onde o modo de viver falasse do
Evangelho.
A beleza da proposta da
vida comum dominicana, baseada no que a Escritura nos conta da comunidade
apostólica, é ao mesmo tempo de extrema beleza e assustadora, sobretudo em
mundo que não cansa de engendrar “jovens ricos” (Mt 19, 16-22; Mc 10, 17-22; Lc
18, 18-23). Mas é justamente neste desafio apresentado por um Deus que não nos
convida à mediocridade (“porque és morno, nem frio nem quente, estou para te
vomitar de minha boca” – Ap 3,16) que está o fascínio exercido sobre corações
generosos, sobre aqueles que não temem fazer de suas vidas resposta a um
Chamado. E o próprio Deus que chama nunca deixa de sustenta-los.
Frei André
Tavares, OP
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